Cultura Caiçara
Espalhadas pelas ilhas de São Sebastião, dos Búzios e da Vitória existem ainda 18 núcleos de comunidades tradicionais caiçaras, onde cerca de 1,2 mil moradores vivem quase que exclusivamente da roça de subsistência e da pesca artesanal, cujo excedente é comercializado. Fotos: Rodolfo Tucci
O termo caiçara tem origem na locução caá-içara, utilizada pelos indígenas da família lingüística tupi-guarani para denominar as estacas e galhos de espinhos colocados em torno de suas aldeias para a defesa das mesmas, e também era como eles denominavam o curral feito de galhos de árvores fincados na água para cercar o peixe.
O indivíduo caiçara é oriundo dos primeiros brasileiros que, por sua vez, surgiram da miscigenação genética e cultural do colonizador português com o indígena do litoral. Os colonizadores utilizaram, como “arma” para se estabelecer no Brasil, a influência direta no sistema de parentesco dos grupos tupis, centrado em famílias grandes. Granjeando amizade com os chefes tribais e ligando-se às grandes famílias por meio do casamento, portugueses (e também os franceses, que tentaram se estabelecer na Guanabara) passavam a contar com numerosos grupos que os auxiliavam em seus projetos comerciais e, principalmente, de colonização.
A população de mamelucos rapidamente se multiplicou, a ponto de a língua geral brasílica ser, até por volta de 1785, o nheengatu, baseada no tupi padronizado pelos jesuítas em meados do século XVI.
Com a chegada do grande contingente de escravos africanos ao país, a partir do século XVII o indivíduo caiçara ganharia mais um traço étnico.
Pouco afeito, considerava-se católico apostólico romano, porém não freqüentava a igreja, a não ser por ocasião das festas religiosas principais, ocasiões em que ocorriam grandes deslocamentos.
Já a formação das comunidades caiçaras é resultante da maneira como ocorreu a colonização do litoral brasileiro, e também dos ciclos econômicos vividos pela região sudeste, centrados em monoculturas extensivas, com técnicas pouco desenvolvidas.
Visão artística da comunidade caiçara
Esta fórmula de colonização induziu à formação de centros urbanos de grande e médio porte, ao redor dos quais gravitavam pequenos núcleos – formados graças a condições peculiares de uma região costeira das mais acidentadas do país, que favoreciam sua ocupação – e que enviavam, aos centros principais, o excedente de sua pequena produção, composta de farinha de mandioca, frutas, peixe seco e algum café.
Devido à extrema dificuldade de comunicação por vias terrestres, muitas vezes, os moradores desses pequenos núcleos pouca comunicação mantinham entre si ou com o exterior. Nestes locais desenvolveu-se – em contrapartida à grande agricultura exportadora – uma agricultura de subsistência, que servia inclusive como retaguarda econômica dos grandes engenhos e fazendas de café, garantindo a sobrevivência das populações locais.
O homem desde há muito aprendera a fazer o fogo, mas o mesmo não aconteceu em relação à água. Nesse ponto, a topografia da região litorânea da região sudeste brasileira, rica em cursos d’água, favoreceu em muito a formação desses núcleos isolados.
O tipo de vida fechada nesses núcleos, quase que isolado do “mundo de fora” em termos de produtos e influências, por causa da falta de poder aquisitivo, resultou em um aproveitamento intensivo, quase exclusivo e mesmo abusivo dos recursos do meio, criando-se, por assim dizer, uma intimidade muito pronunciada entre o homem e seu habitat.
Com o fim do Ciclo do Café, que ocorreu concomitantemente à Abolição da Escravatura em 1888, a larga maioria dos centros urbanos litorâneos da região sudeste do Brasil mergulhou em profunda crise econômica e social, seguida de significativo êxodo populacional, motivado pela absoluta falta de oportunidades. Crise que só não foi maior em Ilhabela ao longo das primeiras décadas do século XX, em virtude do plantio comercial de cana-de-açúcar, que chegou a movimentar cerca de 30 engenhos produtores de aguardente, produto esse escoado para Santos através de grandes canoas-de-voga, embarcações produzidas a partir um grande tronco de madeira, movidas à força de seis ou sete pares de remos ou a vela, quando o vento vinha pela popa.
Já a economia dos pequenos núcleos caiçaras que orbitavam os centros urbanos era caracterizada por uma oposição tanto à economia indígena primitiva, quanto à economia industrial. Seu sistema de produção era organizado para responder, em primeira instância, às necessidades domésticas, mas ainda assim o caiçara prescindia de insumos externos, para os quais precisava gerar um excedente: ferramentas, habitação, medicamentos, azeite para iluminação, vestuário, pólvora, entre outros. Coisas muito simples de se obter hoje em dia, como sal, leite e fósforos, por exemplo, eram considerados bens preciosos diante da dificuldade de consegui-los devido ao isolamento e à dificuldade de locomoção, sempre através de pequenas canoas impulsionadas a força de remos.
A pesca era uma atividade essencialmente masculina, exceto no caso da pesca da tainha, que se constituía numa forma de pesca coletiva (arrasto de praia) de grande importância para as comunidades caiçaras. O peixe, abundante à época, era um alimento básico. Em alguns casos eram criadas galinhas. Porcos e bovinos raramente, ou mesmo nunca, faziam parte da dieta caiçara.
A comunidade caiçara resultante da profunda estagnação econômico-social – que teve início no final do século XIX e se estenderia até a década de 1960 – era formada quase que exclusivamente por pequenos agricultores-pescadores, verdadeiros homens de sete instrumentos como se dizia antigamente, pois tinham que elaborar, por seus próprios meios, a canoa em que pescava e servia de condução aos centros comerciais; as casas em que mor
avam; as roças em que produziam o feijão, a abóbora, o milho, a cana-de-açúcar, o café e a mandioca; o “tráfico” em que “tiravam” a farinha-da-terra – gênero primordial da cultura caiçara –; a cerâmica em que armazenavam água e cozinhavam os alimentos; a farmácia de ervas da qual se socorriam nos momentos de aperto; os cestos, os remos, as redes e linhas de pesca; as violas e atabaques utilizados nas festas religiosas; as armas e cartuchos de caça; além de uma plêiade de objetos para uso doméstico.
Sem contar a caça e o mergulho dos trapiches e pedras da costeira, para essas populações caiçaras, as formas de lazer e distração eram as festas, procissões, danças, alguns poucos jogos e os pasquins.
Com origem na Itália, tirar, deitar, pôr ou lançar um pasquim causava furor em Ilhabela e região – nos séculos XIX e XX – por ocasião de um grande acontecimento ou em situações problemáticas enfrentadas por determinada comunidade. Quanto maior o acontecimento, melhor para pasquim.
A composição do pasquim é demorada. O termo tirar um pasquim vem do fato de ele ser tirado na viola. A diferença fundamental entre os pasquins e as outras formas de cantoria é antes o conteúdo que a forma. Se pelo toque o ouvinte reconhece uma chimarrita, uma praiana ou uma ubatubana, pelo conteúdo logo percebe que se trata de um pasquim.
Dentre as grandes festas de Ilhabela que o longo período de estagnação econômica não enpanou o brilho, estão a de São Pedro; a da Padroeira, Nossa Senhora D’ajuda e Bom Sucesso; e a maior delas, a de São Benedito, durante a qual acontece a Congada de Ilhabela.
O avançar do século XX e a chegada de veranistas e turistas às cidades litorâneas de São Paulo, Paraná e Rio de Janeiro deram, por um lado, nova vida aos antigos centros urbanos, e, por outro, produziram uma modificação profunda na cultura e no próprio modo de vida dos núcleos caiçaras periféricos.
Em Ilhabela, por exemplo, até a década de 1960 os moradores dos diversos núcleos – ou comunidades –caiçaras espalhados pelo arquipélago tinham como principal ocupação a agricultura de subsistência, tendo a pesca como segunda atividade.
Em cada um desses núcleos havia, quase sempre, um morador que era proprietário do rancho, canoas e redes de pesca utilizadas para duas modalidades de pesca das quais a comunidade local participava em sistema de mutirão: o cerco de cardumes e arrasto de praia.
Ao se aproximar o momento do cerco ou do arrasto, os moradores, que geralmente estavam trabalhando na roça, eram chamados através do toque da buzina, um tipo de berrante pequeno produzido a partir do chifre de boi. O produto da pesca era dividido entre o proprietário ou “patrão” do equipamento e aqueles que ajudaram na faina de pesca, os “camaradas”.
A partir da década de 1960, com a possibilidade da venda comercial do pescado e o maior acesso a bens de consumo, os moradores dos núcleos caiçaras passaram à condição de pescadores-agricultores. A pesca comunitária praticamente deixou de existir e os gêneros alimentícios são adquiridos nos supermercados.
Com a especulação imobiliária voltada para a região e o vertiginoso aumento populacional verificado nos últimos 30 anos, foram muitos os que deixaram também de ser pescadores-agricultores, pois foram morar em grandes centros urbanos ou em áreas em processo de ocupação desordenada localizadas em São Sebastião, Ilhabela ou Caraguatatuba.
Espalhadas pelas ilhas de São Sebastião, dos Búzios e da Vitória existem ainda 18 núcleos de comunidades tradicionais caiçaras, onde cerca de 1,2 mil moradores vivem quase que exclusivamente da roça de subsistência e da pesca artesanal, cujo excedente é comercializado. Vivem, assim, em condições muito parecidas a de seus antepassados; verdadeira “mostra viva” de uma cultura passada, na definição dos estudiosos.
O linguajar é único, com palavras e termos que não são encontrados em outros lugares, com acentuado “sotaque” caiçara, na verdade uma herança do português arcaico, onde vigora a acentuação diferente das palavras e a troca do “b” pelo “v” e vice-versa.
Marilanes de Almeida Hungria Cruz
Todo muito lindo em Ilhabela